Inverno da Alma (Debra Granik, 2010)

Filme independente americano surpreende com fortes interpretações.

Antes de falar do filme de fato, acho importante salientar que não existe nenhuma grande distribuidora por trás dessa produção, exatamente como vem acontecendo com alguns filmes indicados ao Oscar de melhor filme nos últimos anos, a exemplo de Pequena Miss Sunshine (2006) e Juno (2007). Eu gostaria de achar que o Oscar está proporcionando uma maior abertura para produções independentes, gostaria. Mas de qualquer forma o filme chamou bastante atenção pelo fato de ter vencido o Prêmio do Júri do Festival de Sundance e o Gotham Awards, além de ter sido exibido e vencido dois prêmios no Festival de Berlim.

Inverno da Alma conta a história de uma menina de 17 anos, Ree Dolly (Jennifer Lawrence), que toma conta dos dois irmãos menores e de sua mãe doente. Logo de início ficamos sabendo que seu pai desapareceu no mundo e deixou sua família, mas agora o pai precisa retornar e comparecer em uma audiência judicial ou todos os bens da família serão tomados pelo governo. A partir daí, a menina mais velha inicia uma busca por seu pai, descobrindo algumas verdades até então omitidas, como seu envolvimento com o tráfico de drogas. O filme inicialmente choca pelo amadurecimento da protagonista, com uma interpretação de encher os olhos, encarada com seriedade e coragem, onde ela se deixa quase sempre em segundo plano, pensando no bem maior dos imãos, uma menina que encara a vida sem lástimas ou ressentimentos, que sabe cozinhar, cuida da casa, da mãe e dos irmãos, enfim, por mais que a condição social seja evidente, pela falta de comida, pela ajuda dos vizinhos e pela tentativa de encontrar emprego nas forças armadas ela não é o foco principal do filme, isso quer dizer, a questão está colocada, mas o filme não trabalha somente em cima disso.

O ponto central do filme é a constituição familiar, o que o torna mais interessante. Os dois irmãos menores entendem o que está acontecendo e protegem a irmã mais velha, o que demonstra, acima de tudo, que eles estão unidos. O tio Teardrop (John Hawkes), com uma interpretação chocante, que desempenha um papel importantíssimo como um falso mentor da menina, nega ajuda no início, mas depois se redime, ele representa um personagem dúbio que funciona como um divisor de águas na narrativa, tendo comportamentos diferentes no início e no fim da história. E ainda temos outras questões que atingem diretamente os três irmãos, como o fato de que alguns parentes desejam adotar (ficar) com o irmão mais novo para diminuir as despesas da casa e também as constantes confusões em que Ree se envolve na procura de seu pai, onde sempre sai machucada. Mas de qualquer maneira, os irmãos, juntamente com a mãe, que aparece muito pouco durante toda a narrativa, se mantêm firmes, Ree passa alguns ensinamentos para os pequenos, algumas artimanhas na cozinha além de ensina a atirar, para uma possível proteção em sua ausência. O filme nos faz refletir sobre a função de uma família, sobre o porquê de sua estruturação e de como alguém pode crescer apenas cuidando dos outros e sem saber de fato o que é "ser cuidado" por alguém.

Mesmo sem possuir um elenco conhecido, o filme é marcado por ótimas interpretações, até mesmo de personagens coadjuvantes como o policial que conhece os esquemas em que o pai da menina estava envolvido, e também a mulher que inicialmente reprime Ree, mas depois mostra onde estava “escondido” o corpo do pai da menina. As crianças também se destacam, e isso com certeza é enfatizado pela excelente seqüência em que aprendem a caçar esquilos, pois existe nesta cena uma clara demonstração de confiança, que é salientada por um silêncio inicial depois por algumas trocas de olhares entre a irmã mais velha e a mais nova, em seguida pela captura dos esquilos, então Ree ensina o irmão a tirar a pele do bicho e o encoraja mesmo contra a vontade do menino. O elenco todo atua em alto nível, tornando a trama bastante real e a história mais palpável, ou seja, você acredita que ela existiu de fato.

Outro ponto bastante interessante e bastante explorado no filme é a fotografia, com suas cores acinzentadas (em um tom quase monocromático) que funciona como uma metáfora para a vida da protagonista, sem brilho, praticamente sem cor, e agora presa em uma busca que pode tirar seus bens mais preciosos. Enquanto a arte tenta diferenciar pelos figurinos dos três irmãos alguns de seus sentimentos, com cores mais vivas para os irmãos menores, tentanto destacar a importância da infância e cores mais escuras para a irmã mais velha, que passa por um momento conturbado.
O filme é realmente muito interessante, muito bem estruturado a partir de um roteiro que deve ter deixado margem para possíveis improvisações dos atores, mas que não se perde em nenhum momento e de uma direção feminina (Debra Granik) que consegue colocar uma intensa carga de sensibilidade e ternura no filme, sem cairo no clichê.
Do meu ponto de vista só pecou em um ponto: o violão, utilizado como elemento narrativo poderia ser muito mais significativo se tivesse aparecido em outros momentos durante o filme, ele poderia ser o fio condutor, o que tornaria, talvez, a história ainda mais interessante. A se destacar o início do filme, onde ouvimos uma bela canção executada por um violão, que poderia facilmente ser o mesmo intrumento do final do filme e conduzido pelo mesmo personagem.

Um filme maravilhoso que faz pensar sobre a estruturação familiar, visto que estamos em um momento propício, não somente pelos contantes filmes que tratam desse assunto como Tetro (2010) e Somewhere (2010), mas pelo próprio mundo que hoje, passa por muitas mudanças, inclusive familiares.


*Renan Lima é editor do Audiovisueiros

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